sábado, 18 de novembro de 2006

(62) A IMAGEM



Acordei esta manhã na disposição habitual.
Sabem quando se acorda não enxergando, nem a roupa nem justificação para mais um dia de luta ? Sabem ! Evitam-me o fastio de explicar, pois assim foi que me arrastei ao quarto de banho.
Ali mora o mais confidente dos meus espelhos, aquele com quem mantenho maior intimidade e no fundo me olha sem os atavios e adereços que adoçam a figura e o grupo social impõe.
Uso com ele de certa sacanice, confesso, pois, para obter respostas positivas, lhe troco as voltas. É assim que diariamente e após mimo cá, mimo lá, lhe coloco a pergunta dos contos de embalar.
Espelho meu, espelho meu, diz-me que não há tipo tão feio como eu.
Tudo começou a correr mal quando ele me quis gozar no intuito evidente de azedar o dia e respondeu mordaz:
“mas não, mas não... há por aí tipos bem piores do que tu “
Tanto desatino irritou-me e atirei-lhe a saboneteira, estilhaçando-o, e ele, mudo, devolveu-me uma imagem horrível.
Boa. Era mesmo o mais feio.
Já tranquilo sentei-me na sanita, e, cumprido rapidamente o objectivo, saltei para o duche e até cantarolei.
Já tinha que fazer. Ia comprar um espelho.

(61) AMARELO

Sem me captar grande interesse, decorria a reunião em normalidade, não fora a chata da sujeita que me coube por vizinha. Tagarela... Tagarela por inteiro...
E pelas tantas e pelo desinteresse do paleio, desliguei, deixando a sujeita em continuado monólogo.
Voltei a ligar quando ela, no recheio duma qualquer frase, afirmou detestar todos aqueles tipos vermelhos que nos rodeavam.
Aí, não resisti e na tentativa de a aquietar, sem saber o que o feito me reservava, ironicamente exclamei:
“É verdade, ainda bem que você é azul”
A resposta veio embrulhada num ramo de bemmequeres:
“Notou ? Foi por isso que me sentei junto a si, adoro o seu azul celeste.”
A tipa, além de tagarela era indubitavelmente daltónica e em definitivo calou-me.
Aterrorizado, posso dizer, levantei-me e saí em silencio de sorrido amarelo.
Cá fora corri a um espelho e dei graças, não havia manchas verdes.
Porque sim, eu sou amarelo e detesto estas reuniões de vermelhos e azuis.
Felizmente ela não me tocou !

(60) JUSTIFICAÇÃO


Se vamos definir o louco por aquele que perdeu a razão,
teremos de definir o estado psicológico de quem julga a razão.
Por mim diria que somos razoavelmente razoáveis entre alguns momentos de loucura.
E daqui eu não saber de que lado me colocam.
Estou num deles e, certamente, viajo para o outro.
Por força vou equipado (a tal bússola, relógio, máquina fotográfica, gravador, cadernos de apontamentos, etc etc e até mesmo o passaporte, pois a loucura razoável não é exclusivo dos países da CEE).
E tudo isto porquê ?
Julgo-me um tipo porreirinho e no regresso, se for caso disso, poderei com provas publicitar o deserto ou o oásis, conforme seja o caso, ajudando os indecisos.
Previdente e sobretudo disciplinado. Mas ainda mais curioso na matéria.

(59) DO OUTRO LADO DA LOUCURA

Durante vários anos foi diário o meu contacto com o Júlio de Matos.
Vejo pelos sorrisos que isto não começa bem. Não sejam preconceituosos.
O caso é que vivia ali perto num alto sétimo andar, abrangendo a paisagem daquele belo parque da cidade e, na rua, quase obrigatório era o caminhar junto ao longo gradeamento.
Numa dessas ocasiões, foi a minha atenção activada por um pst-pst
Pelas grades espreitava um rosto, entre curioso e apreensivo, de olho brilhante e ar inteligente, prenhe de cumplicidade.
Ao meu bom dia, correspondeu e perguntou:
"Sabe por acaso quantos são ai dentro ?"
A questão, por dúbia, obrigou-me a alguma reflexão e a responder na verdade, a minha:
"Não sei, talvez muitos"
Segui, de novo acompanhado pela frustração da minha incapacidade de voar

sexta-feira, 17 de novembro de 2006

(58) SOLIDÃO... QUE SOLIDÃO ?






DIZ O MUNDANO: É O INFERNO
DIZ O ANACORETA: É O PARAÍSO

Aceitemos estas e todas aquelas que preenchem o leque intermédio, das cores brilhantes aos cinzas mais negros.
Pela condição humana e após o empurrão uterino, estamos sós e sem preparação para o percurso.
Uns herdam a dádiva de serem queridos, desejados e amados, outros não tanto.
Nessa caminhada de pé posto que é a vida, cada um vai colhendo o tipo de solidão que lhe cabe, senão por escolha, no mínimo por atitude, esquecendo que neste teatro o cenário é essencialmente de espelhos a reflectir a prática da sua postura.
Não sinto a solidão como um malefício, antes quase uma opção, carecendo duma gestão espiritual serena, abrindo brechas onde caibam sentimentos que sem os outros não obtemos.
Reconhecendo a presença indestrutível da solidão há que saber viver com ela, única forma de adoçar os seus efeitos.

(57) O ADEUS À LUTA

Ao cabo de todos estes textos perdi-me nos meandros desta luta e não atino se venceu a solidão, a vontade de estar só ou simplesmente houve acordo.

Sem saber assim fico, se estou só por coacção ou opção.

De qualquer modo, acomodei-me e sentido não faria continuar a bater em ferro frio.

Vou em cruzada a outras lutas.
Nos campos de batalha dos preconceitos e loucura
sem lança, sem cavalo e sem aio, conto que finalmente esmoreçam estes meus devaneios.
ATÉ

terça-feira, 7 de novembro de 2006

(56) O CHILREIO


Quando passei sob o velho e imenso plátano, corria manso o Outono e o Sol, em fim de dia, entre ensonado e teimoso, tentava sacudir os aconchegantes farrapos de nuvens à sua volta.
O chilreio cativou-me. Não resisti e, contra natura, resolvi cobrar a minha quota de cusca, tentando perceber o que por ali se dizia.
As aves chegavam aos bandos, regressadas da grande aventura do dia corrido.
Procuravam poiso para a noite próxima e na excitação da chegada e do convívio, gritavam em chilreio as aventuras das últimas horas, vividas em intensidade na procura e conquista do verme, nos voos picados, o espadanar nos charcos e os namoros. Não queriam de todo ser ouvidas, queriam apenas ouvir-se para acreditar na realidade do tempo vivido.
E cada novo bando era chilreio renovado e aumentado.
Fechei os olhos. Tão semelhantes as encontrei aos humanos.
Na ânsia dos seus relatos. Chilreavam em uníssono e muito embora ouvissem os outros, seguramente não os escutavam, satisfazendo-se naquela afirmação do eu... eu... eu...
Algum mérito eu credito aquelas aves na comparação atrás feita.
O chilrear foi melódico e o silencio profundo, logo logo que o Sol se tapou.
Com os homens é raro.

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

(55) PARA SEMPRE


Os outros para mim
Passam ao largo
Roçam-me ou
Atravessam-me.
Neste último caso, cativam-me à eternidade
.

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

(54) CUIDADO NÃO APONTE


Um favor eu quero pedir aos poucos que me visitam:
Não entendam dos meus textos ou das suas entrelinhas,
fácil critica de poleiro ou afirmação gratuita
O relato do que sinto ou me é dado observar,
destinatário não tem,
sendo tão e tão somente o desejo de mudar.
Não esqueço que esse gesto, do indicador esticado,
deixa ali aqueles três dedos que para mim estão a apontar.

(53) A RECEITA



Os meus momentos de felicidade tem sido lampejos.
Suponho por isso legitimo ansiar pela plenitude.
Numa dessas revistecas que tudo solucionam, era prometida a conquista da felicidade em dez passos, com o aval de não sei quantos cientistas e testemunho de outros tantos supostamente felizes e decerto também bem pagos.
Céptico por natureza, não deixo porém de estar aberto à mudança.
Esta atitude e a aparente simplicidade das dez tomas do milagroso milongo, umas diárias, outras semanais, embarcaram-me na experiência, entrando desde logo nas tomas diárias.
As duas primeiras seriam canja.
1) Cortar metade do tempo a visionar TV
Tirei a ficha da tomada. Dada a qualidade da programação, estava a usar para adormecer. Cá me arranjarei e, se necessitar, tomo um soporífero.
2) Tratar duma planta
Isto adoro. O problema é que trato de muitas e fico receoso do perigo da toma em excesso, mas esperançoso que daí mal não venha
3) Dizer olá a um desconhecido
Teria de sair. Sem hesitar, aperaltei-me e, todo janota contra o meu uso, desci as escadas.
Cruzei-me na porta com o tal desconhecido. Franqueei a passagem e disse OLÁ.
A primeira decepção. O tipo, carranca afivelada, olhou de soslaio, passou. Não correspondeu, nem agradeceu a gentileza.
Sem perca de tempo, saí e deparei com uma mulher ainda jovem. OLÁ, disse eu, quando se aproximou. Não olhou, levantou a cabeça e prosseguiu, certamente convencida que eu pretendia um engate.
A adrenalina começou a borbulhar e fiquei especado.
Entretanto aproximava-se uma velhinha com ar seráfico. Afivelei o meu sorriso às comissuras, sem receio de mostrar os dentes que já não são meus e, na aproximação, gorgeei o meu melhor dos OLÁS.
Boa. Parou. Fitou-me compadecida e disse:
Tenha paciência. Não tenho trocado.

Não tomo mais nada
Desisto de ser feliz por inteiro, contentar-me-ei com os lampejos. Dependendo de terceiros, o grau de dificuldade sobe em flecha.
No entanto sem responsabilidade nem garantia de êxito, estou ao dispor para indicar os restantes sete passos.
Pode dar-se o caso sejam mais “felizes” do que eu.

(52) O ECLIPSE

Estou com problema sério.
Ao rever os textos, supostamente por mim escritos, reconheço o tema e a ideia, não a forma. Olho com espanto o escrito daquele estranho a trabalhar a minha ideia.
O que quer dizer que, se fizesse daquilo folha branca e voltasse a pintá-la, seria com outras cores.
Acham grave ? Devo ir às medicinas ? Nada de sorrisos, ajudem-me.
Em principio pensei fosse traição da memória, aceitável e lógica causa dos meus 525 anos estelares.
Pensei depois talvez resultasse do facto de escrever, como falo, sendo razoável que as palavras fossem levadas pelo vento, pois na maioria não passam de conversa.
À cautela, homem prevenido vale por dois, e receando seja do chip memória, vou preparando justificação para a desgraça.
Já que ela nunca vem só, venha no menos acompanhada de algum optimismo.
Logo uma luz se acendeu.
No mínimo ganho duas criticas ao escrito. No inicio a autocrítica, sendo a minha pouco benévola, e mais tarde, em face do irreconhecível documento, a critica dum terceiro, eu próprio, esta à evidencia mais isenta.
Outra vantagem se me deparou de imediato: aos que nos magoam e perdoamos, acresceria o consolo de os esquecer, facto sem ocorrência na memória plena.
O verdadeiro problema é que não. Não é do diacho da memória.
Vejam só, jamais me esqueci do número atribuído ao meu Pai na corporação de que fazia parte, e não me venham com tretas de memória recente e passada, pois o mesmo me acontece em casos de ontem e anteontem. Basta que algo me toque... e tocado viro outro.
Porque será então ? O texto está compreensível ?
Acham valerá a pena escrever tudo isto de novo ?

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

(51) A CRISE





O puto parece preocupado, agressivo ou chateado ? Não
Para o futuro garantir, apenas presta atenção ao jornal que tem na mão.
Na escola já pouco aprende, basta ler ou soletrar e até cem saber contar
No desenho é a estrelinha e depois é acertar.
Lá em casa ? É mais do mesmo.
A mãe, o pai, o irmão e pensaram, vejam bem, dar ao gato essa instrução (qu’ele até vai arranhando !).
Grandes descobridores, antigos donos dos mares e de meio mundo também, ficou daí a mania que o trabalho é fantasia e coisa que não convém.
E assim a navegar, dou por certo irmos ao fundo.
Mas já sendo campeões, pois com a França lideramos o gasto no euromilhões, não interessa mais a crise, se há dinheiro para comer, nem tão pouco para vestir, o que interessa, podem crer:
É apostar, apostar,
alguém há-de pagar
e o que der é para curtir

(50) (CON) VENCIDO PELO CANSAÇO

Da minha odisseia, mesmo quem já foi chateado, apenas faz pálida ideia.
Tudo começou naquele fim de dia de Outono... com licença, não vou citar ... a brisa, o pôr do sol e outros adereços, vou directo ao que interessa.
Pelas 20 horas, toca o telefone e atendo.
Uma delicada voz de mulher pede-me para chamar a Joana.
Por bem ou por mal, estava só.
Disso fiz informação à senhora que se desculpou e foi-se.
Pelas nove, novo toque.
Era um puto que me pedia para chamar a Tia Joana.
Ligeiramente intrigado, esclareci o engano.
Uma hora mais tarde era um sujeito de grossa voz.
Pedia para chamar a filha, a Joana.
A minha panela que em lume branco já estava, passou à fervura e a tampa saltou.
Depois de alguma troca de mimos o sujeito mandou-me à merda.
Eu desliguei... e não fui !
Não digo mais nada.
A partir daí e precisamente de hora a hora todos queriam falar com a Joana.
Não discuti mais.
Às oito da manhã, completamente derreado, olhos encovados e a bocejar, resolvi ir encostar a cabeça na palha, um pouco em sobressalto.
De solavanco em solavanco lá desci o penhasco do sono e entreguei-me profundamente...
Estava nesse vale da paz e um som estridente e repetido, acordou-me.
Era a campainha da porta e claro, eram nove horas.
Vesti o roupão e fui abrir.
Vinha ensonado e fiquei extasiado.
Deparei com um sonho de mulher, leve, sem pinturas ou mascaras, irradiando paz e frescura, só faltando abrir-lhe a cabeça para ver se também seria assim por dentro.
Olhou-me sorridente e disse:
Sou a Joana, a sua nova vizinha, peço desculpa de incomodar tão cedo.
Vinha ver se deixaram algum recado para mim.
Sem saber o que fazer, mandei entrar.

Ai, esta memória, como relembrei isso agora ? Tantos anos passaram e... raios, lá está o telefone outra vez:

Joana, atende aí!

É claro que os preconceituosos estão já a pensar:

“melhor teria sido que ele fosse à merda como o mandaram”

Mas não, enganam-se. E além disso poupamos uma renda de casa.