terça-feira, 30 de setembro de 2008

(188) A posse

Quando um Domingo me apanha na capital, ofereço-me uma fatia do dia, pequena seja ela, a deambular na Ribeira e sua feira de coleccionismo.
Mais cusca que comprador, miro e remiro as bancas dos vendedores de supérfluo. Das moedas aos pacotes de açúcar, dos selos às caixas de fósforos, postais e quejandos.
Certo tenho eu: o valor das coisas está na razão directa do desejo da sua posse.
E a posse é uma estranha figura, sinistra até, oferecendo uma aparente sensação de domínio e exclusividade, tanto mais agressiva quanto o objecto da posse mostra sua inutilidade na concretização do acto de viver e ainda carece de cuidados na sua manutenção e guarda.
A coisa é sofregamente adquirida, classificada, sistematicamente arrumada, por vezes escondida de olhares estranhos, apenas revista quando agregada companhia ou na ressaca de uma qualquer nostalgia.
O valor real e material da coisa apenas existe na mente do seu possuidor,
além dos valores também relativos que outros lhe possam atribuir, sendo assim fraca a sua função vital.
Sendo humano, (serei !?!?), negou-me a natureza a fuga a esta servidão
Quando jovem sofria ao desejar coisas fora do meu alcance material. À revolta contrapus resignação e disciplina. Dei assim a volta e hoje, podendo possuir essas coisas, refuto-as por inúteis.
Dizem-me estar no átrio do paraíso por me limitar, com raras excepções, às primárias necessidades da sobrevivência.
Tenho ainda um senão.
Dispondo de algum espaço, não deito coisas fora, conservo mas esqueço.
As coisas acabam por não cumprir a sua malévola função e decerto não me possuem.

sábado, 27 de setembro de 2008

(186) Beleza e dor



Dois pormenores dum magnifico monumento de homenagem ao sacrifício, dor e sofrimento
A visitar na Várzea de Torres Vedras

(185) Beleza e trocadilho


Não gosto de comer. Ponto assente e nada a fazer.
No acto instintivo de manter o esqueleto activo, não deixo porventura de cumprir essa submissão natural egoísta, ir devorando os outros, de preferência cozinhados.
Por vezes, quem convida ou é convidado, questiona na escolha e minha resposta invariável é: escolhe tu, tanto faz o que vier serve.
Resposta convicta e sincera, todavia chata e arreliadora para quem a coloca com a melhor das intenções. Não há mesmo nada a fazer comigo.
Foi o caso. Amigo, sem este meu mau feitio e apreciador da mesa e dos artifícios sobre ela a colocar, usa convidar-me a um restaurante zona oeste, por acaso acolhedor.
Nesta ultima foi interessante. Constava da ementa massada de cação.
Fomos atendidos por mulher esbelta, que respondeu nunca tinha provado, quando pretendemos saber se o peixe era o por nós suposto.
A resposta veio embrulhada num sorriso simpático e ingénuo, emoldurado pela sua juventude e ligeira maquilhagem.
Enfim, lá resolvemos partilhar a dose.
Para mim foi um raro momento de excepção, obrigando-me, pela verdade, conta a pagar, a dizer à dita empregada que afinal, contrariando a minha expectativa, aquilo não tinha sido de forma alguma maçada... fora efectivamente um prazer...
Também me acontece...

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

(184) Palavras


e muitas outras...
Desta vez, passeio à vista,
fui enchendo a mochila com mãozadas de palavras,
colhidas a esmo e sem critério.
Tarefa terminada e, na mirada, logo pasmei.
Tantas e tantas conhecidas palavras e, ali,
naquela insensata mistura,
tão vazias de sentido se mostravam,
mexendo-se atabalhoadas, acotovelando-se, sem ordem,
algumas felinas, agressivas...
Fora dum contexto, podem ser tudo e nada!!!
Sem desanimo, mochila a tiracolo, sai,
determinado a trazer ordem ao caos.
Depois, pelo caminho, fui esvaziando a mochila,
palavra aqui, palavra ali, sequentes,
cada uma aceitando a outra,
dando-lhe espaço, vida e significância.
E serenamente apreendi:
As palavras são como os afectos,
espelham-se nos outros
para desabrochar em plenitude.
Fez sentido esvaziar a mochila...

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

sábado, 20 de setembro de 2008

(182) Show na feira











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Nesta cidade e em estreitas ruas onde o vidro da minha máquina descobre destas coisas, é uso, uma vez por mês em parte do ano, ser montada uma feirinha rural onde os produtores da zona e alguns artistas, expõem os seus artigos.
Há por regra um grupinho a animar os visitantes.
De certa vez tive a sorte de presenciar um show, dinâmico, espirituoso e envolvente e atrás deles andei, com muito interesse, percorrendo aquelas ruinhas tão minhas conhecidas.
Aqui deixo a lembrança retida dessa maravilha. Parabéns.

sábado, 13 de setembro de 2008

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

(180) A busca


Lido comigo há tempo demais e continuo sem me conhecer quanto queria, mesmo suturando lacunas no traço do perfil.
Entre os humanos não devo ser peça única sofrendo desta anomalia e, neste caso, o mal dos outros anima-me, não por regozijo, antes pela solidariedade.
A deprimência e o desanimo tomam porém posse, quando os outros, privando de algum pouco do meu tempo, logo afirmam que me conhecem bem, sou transparente, previsível.
Quedo perplexo pela perspicácia desses génios capazes de penetrar a minha mente em corredores para mim inatingiveis.
A inveja, de mim tão arredia, faz da deixa a sua insidiosa entrada, espicaça-me em silencio, por sorte quebrado pelo murmúrio do leal discernimento.
Em duas penadas este deixa liquida a questão.
É a riqueza da diversidade. Entre os humanos pululam os que nada sabem de tudo o que sabem e ainda os de má intenção. Se eles não existissem, como distinguiriamos os outros ?
Constatada a ausência de minha falta, volta a serenidade ao meu reino só inquietada pela continuidade da procura, na tentativa, espero não gorada, de me encontrar antes que me perca de todo.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

(179) O tango

Anunciam na Ribeira tardes dançantes, lembrando as velhas academias de décadas atrás.
Não sei o que hoje ali se passa, nem sequer tipo de frequência ou som, mas posso especular na diferença, atendendo aos actuais padrões éticos e sociais e às liberdades ou libertinagens agora acrescidas, como queiram.
Antes, no tempo de "a menina dança ?", a coisa era castiça.
Castrados pelo atraso na chegada da internete, homens e mulheres podiam assegurar ali, além do prazer da própria dança, os seus convívios, encontros, enleios e paixões, por vezes com passadeira directa ao altar.
O som era então melódico, lento, com poucas alternâncias do chamado "abanar do capacete".
Intervalavam, para arrefecimento corporal, no clássico "damas ao bufete", olhos postos na gasosa ou pirolito a pagar pelo gentil cavalheiro.
O Amancio e a Rosalinda haviam-se conhecido numa dessas, talvez no salão dos Bombeiros Voluntários à Camilo Castelo Branco.
Respeitadores (?!) semana após semana, ali se enlaçavam, rolando na lentidão dos slows e tangos, preferindo o centro do salão na fuga evidente aos inquisidores olhares das matronas, acompanhantes das mais jovens, e também para, esquecido o pudor, encostarem os rostos e semicerrar olhos nas asas daquele fugaz sonho.
Então a musica era o somenos. Eles marcavam o ritmo.
E, numa dessas ocasiões, a uma maior pressão das mãos do Amancio nas costas da Rosalinda, esta tremelicando balbuciou:
--Ai senhor Amancio, senhor Amancio...
E o Amancio, de cabeça completamente perdida, replicou:
--Amansio a senhora. Eu já não posso!!
Acabaram por casar. De branco e flor de laranjeira. Se foram felizes não sei.
A ranchada de filhos decerto desconhece que a Cumparsita ou o Bejame mucho, tiveram grande influência na sua chegada à vida.

(178) A escolha

domingo, 7 de setembro de 2008

(177) Saia/calça

Tinha esperança, enquanto por cá ando, assistir à reconciliação do preconceito e da verdade.
Porque, para tal, seriam indispensáveis cedências mutuas, porventura não será provável e tão pouco possível.
Coabitando no palácio da vida, o preconceito sai e anda por aí tresloucado e valdevinos, dando-se a conhecer a todos, enquanto a verdade raramente se atreve a assomar à janela e com ela poucos privam ou tem ideia distorcida, tal a foto aqui apresentada.
Muitos a terão como interessante, contudo poucos perceberão o que retrata.
Na poeirenta, todavia arrumada, cinemateca da memória, ao rever filmes dos anos 50 ressalta a evidencia: a mulher não se permitia usar calças.
Puladas umas décadas, não é fácil encontrar mulher de saias, ressalvada a circunstancia, a temperatura e o conforto.
Óptimo, a razoabilidade ganhou espaço e acrescentou beneficio.
Resta porém uma questão por resolver.
A mulher usurpou a veste do homem e todos dizem: é moderna, é prática.
Se o homem usar vestimenta tida por feminina, na vã esperança dos óbvios benefícios, será de imediato tido como homossexual, travesti ou outra cena, só obviamente olhada benignamente em época carnavalesca e, mesmo aí, com o peso da preconceituosa malícia e despropositada exclusão das opções e liberdades dos outros.
Porque não abre o preconceito a porta do guarda fato, permitindo finalmente a plena igualdade entre os sexos ?
Ah ... é que na "verdade" parece não ser provável, nem tão pouco possível.

E aos crédulos vou dizer, a foto, embora não pareça, é duma abóbora.
Sei que é verdade. Foi a minha digital que me contou !
Não se podendo confiar na verdade, verdadeira, até se justifica o devaneio dos disparatados preconceitos.