segunda-feira, 26 de junho de 2006

(28) O BRINCO


Na paragem do autocarro, à minha frente e conversando, aguardavam um homem e uma mulher.
Ele, rapaz da minha idade, centenário que estou quase.
Em abono da verdade, fintando falsas modéstias, na aparência lhe ganhava.
O estilo, ouvi depois, autentico macho latino, coisa de mim arredada.
E a olho desarmado, pese o contraditório, parecia Sancho não Quixote.
Tudo certo, somos diferentes, não fosse o belo discurso a cair sobre um cartaz, ali mesmo à nossa frente, dum actor cá do sitio, de orelha abrincoada.
Dizia o homem assim: O quê ? Aquele também virou ?
E a mulher respondeu:
Não tem nada de mais o pai também usava brinco
- Ora, ora, eu uso as pendurezas noutro sitio.

Contra aquele preconceito, funcionou de imediato o meu:

Pouca inteligência, só embrulhada em bom senso. E o bom senso ali ditava que o acessório não garante o atributo. Fosse essa a regra teria de ser notado que a mulher usava calças.

E a tentação foi questionar.

Um sujeito atrás de mim, abrincoado também, evitou a minha entrada, e foi curto e grosso: Oh meu! Se calhar só te serve para pingares os sapatos e mesmo assim quando não queres.

Não havia necessidade !
Mas lá que foi merecido, foi...
E a dúvida me ficou se o sujeito da lição aproveitou.

Acredito que a excepção a “burro velho não aprende”, não vence no caso contado.
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domingo, 11 de junho de 2006

(27) CONFISSÃO

PRECONCEITOS ? SIM, CONFESSO:
Eu tenho...
E não me consola saber que o verbo se conjuga por inteiro:
Tu tens, ele tem e também são verdadeiros os plurais.
Humildade, aceitação da diferença, evitam a fácil critica.
Nesse pisar descalço, alguns se irão perdendo, vindo outros por acréscimo..
E o segredo será conseguir que as percas superem os ganhos




sexta-feira, 9 de junho de 2006

(26) AS PORTAS E A PORTA

Estranho amigo do peito aquele.
O Ricardo era assim.
Metido consigo, cozinhava as suas dores em lume brando e partilhava comigo o cozinhado.
Sofrimento e prazer, como sempre, tudo ao molho.
A olhar a bica e os pasteis de nata, filosofávamos sobre o aparente sem sentido do sentido da vida.
Filósofos de água a ferver, como ele dizia.
Naquele dia um lampejo de entusiasmo minava-lhe o semblante por regra sisudo.
Espanto o meu, habituado que estava à sua fronha cerrada.
Logo confessou e descodificou.
Era para ele a vida um grande jogo.
O prémio assegurado: a morte !
O jogo era iniciado perto da grande arena. As regras, simples e fiáveis. Oferecidas eram imensas portas, correspondendo a outros tantos percursos. Concluído o percurso ou em qualquer passo do mesmo, podia o jogador regressar à arena e escolher nova porta, nova caminhada, sabido porém que uma delas era a última, a porta maior, a sem retorno.
Tão diferente e tão semelhante aos romanos jogos ali então em uso. Nestes a morte resultava de violência imediata que alguma força ou perícia podia apenas adiar.
No jogo do Ricardo, as dores e o sofrimento porventura estariam lá. Seriam contudo mitigados por uma ou outra centelha de felicidade emprestada de algum dos percursos.
Em confidencia me disse que andava nisto há muito, usara e abusara, impetuoso, sem hesitar na escolha, nem sequer temido ou desejado a porta grande.
Saíra hoje do último percurso e decidira abrir outra.
Poucas restavam.
Após tanta caminhada, de sucesso e insucesso, de ganho e perca, de amor e ódio, gostaria de saber, dizia ele, qual delas era a porta grande.
Estava cansado. Apesar da pedra pisada fora privilegiado, vivera com intensidade e bebera de muitas fontes.
Não comentei tanta excitação e entusiasmo.
Uma ligeira brisa trouxe o silencio, acompanhado de algumas estrelas. Aceitaram o convite para a nossa mesa. Entre todos, sem comentar, fomos trocando as nossas verdades.
Algum tempo depois o Ricardo, sem falar e com estrelas nos olhos, deu-me um abraço emotivo, beijou-me, e foi...
Ele era assim.
Olhei, triste, os pastéis de nata que sobravam.
Sou guloso, comi-os.
Não tinham gosto, antes alguma amargura.


O Ricardo não voltou mais