quinta-feira, 16 de outubro de 2008

(193) Gorilas












Fotos por cortesia de wikipedia
Certos eruditos doutores, interessados e estudiosos, seguem afirmando, argumentando e colocando as raízes humanas bem fundo, chamando macacos aos nossos ancestrais, preferencialmente gorilas e chimpanzés.
A ser pejorativo o sentido e a haver ofendidos, estes decerto serão os macacos, pesem embora as semelhanças físicas.
Poderá o caso ser assacado de evolução ?
Pelo exame superficial da foto, verificamos que o animal é contemporâneo, fere o nosso sofisticado conceito de beleza, parece tranquilo, observador, de olho arguto, inteligente decerto, pois de outro modo como teria iludido a fila dos eleitos e resistido à generosa oferta da tal evolução ?
A tempo se afastou...
Apresenta-se desataviado, descalço, beneficiando do magnetismo terrestre pelo contacto sem interferências, não tem obrigações laborais, alimento sempre consegue da generosidade da natureza e de sexo lá se irá governando, aqui e ali.
Livrou-se do incerto e angustiante voto e também da gravata, e vai tentando a supremacia no seu pequeno grupo, aplicando meia dúzia de empurrões e tabefes, na utilização de DNA semelhante ao humano, contudo, e se vencido, não metaboliza a raiva e inveja, integrando-se sem ressentimentos no lugar que lhe coube.
Superando os gauleses nem sequer receará o tombo do céu na sua cabeça, por onde também não passará o temor que o dito evoluído por ali apareça e lhe suprima a beleza natural circundante oferecida pela floresta seu habitat.
E, quando no alto do galho, come a sua banana e displicente atira a casca para trás, nem sequer sabe que a natureza e seus auxiliares (terra, sol e água) rápido a degradarão o que obviamente os ditos evoluídos não conseguem ao depositar a esmo as cascas plásticas dos manipulados alimentos, cascas que levarão dezenas, centenas de anos a degradar-se, podendo até ceifar vidas nesse longo processo. E eles sabem !!!
Este nosso contemporâneo, pode ser macaco, mas parece ter escolhido bem ao safar-se de tanta involução.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

(192) OLÁ


Hoje o preguiçoso sol não atina, orgiando entre húmidas nuvens, só de longe em longe deixa antever um dos seus grandiosos orgasmos.
Todavia preparei-me, determinado a expulsar o desanimo e a tristeza.
Meti ao bolso uma dúzia de olás e outros tantos sorrisos, esse precioso e contagiante esgar de cujo uso o humano vem perdendo a prática.
Na gaveta por inúteis, ficaram os preconceitos e muitos outros sentimentos provocadores de angustia, dor e raiva.
Fui caminhando e distribuindo o que trouxera, sem olhar a quem e, sem encontrar espelho, em breve desisti, não porque me tivessem por louco, pois a verdade não me afecta, mais por ter, sem êxito, esgotado os bons recursos.
Resta-me a reflexão:
Devo atribuir culpa ao devasso e belo sol ou ao desenfreado galope da vida na ansiosa busca de metas para além da ternura e do afecto ?

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

(191) Esperteza saloia



Embora conste ser o homem animal politico, posso afirmar, com muito agrado, não ser da politica profissional, pese embora goste de visitar mercados.
Quando topo um, meto sempre o nariz, na antevisão do prazer.
São depósito vivo de usos e padrões sociais, numa miscelânea de culturas.
Desta vez entrei para comprar e aí sou cauteloso.
Olho, comparo e apalpo.
No caso de pouco valeria a apalpadela, pois dum molho de espinafres se tratava.
Fora da banca uma mulher já idosa, pesadona, obesa, diria, jus fazendo a tantos adoradores de comida.
Lá dentro, a mando daquela, homem jovem, talvez filho, talvez neto ou talvez outro qualquer vinculo que ao caso não vem.
Fui discutindo a exorbitância do valor atribuído ao molhinho e ela arengava, na sua singela cultura mercantil que sim, eram frescos, apanhadinhos há pouco e tinham muito ferro, ao que retorqui que apesar do ferro eram leves em demasia e muito mais ferro tinham os euros solicitados.
Às tantas, estando eu, como de uso, vestido à ligeira, para a frescura da manhã, as mãos me apalpou exclamando:
--Olha, tenho 69, é muito mais velho do que eu e tem as mãos quentinhas.
Não retirei conotação erótica e protestei com veemência:
--Mais velho !?!? Ora essa ! Ainda há pouco fiz 30 e o meu aspecto e barba esbranquiçada são da vida que levei.
A sua observação e falta de raciocínio não viviam sós, coabitava também a falta de humor, tudo transparecendo na estupefacção assumida naquele rosto envelhecido, implicitando: "coitado, tão novo e tão acabado".
O titulo do texto não ilude, aqui o saloio fui eu, pois acabei por pagar acima do valor justo, com disfarçados descontos nas batatas e cenouras.
Levei o excesso à conta do ingresso num espectáculo que nem sempre é tão nice. Deliro com estas coisas e espero que Deus me perdoe ou alguém a seu mando, se, por azar, ocupado estiver.
Juro que o piripiri não comprei !

domingo, 12 de outubro de 2008

(190) O gavião

Na tentativa do voo batia vigorosamente os braços e, de súbito, estava a planar na copa.
A surpresa do efeito baralhou-me.
Em desespero, enlacei um forte tronco que o velho senhor me estendia e respirei fundo.
Conseguira!
A esperança de repetir, aconselhava repouso, mas às minhas mãos faltavam pequenas, porventura grandes ferramentas: garras aduncas, um bico e rapidez de reflexo para calar o persistente zumbido dum teimoso e maçador moscardo.
O murmúrio da brisa soava a sorriso de malícia, face à minha inoperancia em resolver problemas comezinhos.
A ansiedade do fracasso iniciava os seus avanços quando o gavião, ligeiro e suave, poisou a meu lado e o grande e triste olho amarelo me fitou longamente.
Volvidas eternidades, disse ele:
--Tens os teus devaneios ?
Na certificação daquela insólita realidade e para não perder o equilíbrio nem sequer cocei os olhos ou me belisquei, e retorqui titubeando:
--Mas... falas ?
Mergulhando o olho profundamente em mim, retorquiu:
--Por má sorte. Era como tu, incauto e ambicioso, consegui o dom da fala e da memória, tendo de aceitar essa tralha de equipamento que os homens chamam de razão, consciência, inteligência, conjunto terrível na produção de emoções cujo malefício eu desconhecia.
Perdi a paz e serenidade e a regressão não é possível.
Deixei de viver a plenitude, o aqui e agora.
Ficou presente o sentimento de culpa e a sensação egoísta de sacrificar outras vidas para conseguir sobreviver.
Um inferno. No fim do dia pergunto-me se mereço viver.
Olha, se conseguires o dom de voar, rejeita todos os outros e assim usufruirás da singeleza da vida animal, sem ontens, sem amanhãs, sem remorsos. Sem esperança e sem passado.
E dito isto, lançou-se ao espaço e voou ligeiro.
Em simultâneo soou uma estridente campainha e, desequilibrando-me assustado, caí... da cama claro para de novo enfrentar a outra realidade.
Tocava o telefone e, sendo tardia a hora, deveria ser o diabo, personagem central na representação da existência de Deus e seu lacaio na execução do desagradável.
Fui atender... e era.
Até hoje... o amarelo sempre me lembra aquele olho sem lágrima, triste e tão choroso.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

(189) Desfazendo

Acabei de desfazer mais um.
Foram 365 dias desfeitos, um a um.

Essas alegrias, tristezas, desânimos e esperanças, entraram assim na virtualidade, nesse deserto onde as coisas se perdem, as boas e as más, e a que alguns virtuosos da palavra e do saudosismo chamam de passado.
Datam, rotulam, seccionam, como fazem a tantos outros rituais.
Suponho que o nosso ontem apenas represente experiência, como campainha avisadora de situações não iguais todavia semelhantes.
Não me posso queixar, sou como tantos outros e a sina é começar agora, dia a dia, a desfazer mais outro, até que a tarefa seja dada por cumprida.
Até é chato que tão disciplinado eu seja !