sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

(65) ESCUTANDO



É proposto reflectir sobre a influencia que possa ter tido em mim o atendimento de prevenção do suicídio, anónimo, solitário e pontual em que durante anos escutei a angustia, o desespero e a solidão dos outros.
Quando iniciei essa escuta, há muito andava eu prenhe de raiva e intolerância. Duas figuras um tanto mesquinhas porém garantes da continuação da vida, mesmo quando tudo indica o contrário. Magnificas substitutas do desânimo e da apatia, estas por certo levando a outros caminhos.
Creio que nunca fui menino e daí sempre considerei a vida tarefa árdua. O fardo é difícil de transportar na subida e, por vezes, também na descida, ao contrário do que dizem dos santos.
O intolerante, por demasiado assertivo e pleno de disciplina, não é de todo bem visto. Assemelha-se ao ditador.
Porém nele coabitam a convicção e a justiça.
Quando critica os outros, exige o dobro de si.
Já a raiva é menos nobre, tem outra cor.
É aversão, falta de crença, não aceitação, contrariedade. O “porquê eu ?”.
Pela via errada, é luta contra a soberana ditadura da natureza.
Lá me integrei no tal de atendimento. Anos pesados que foram !
Na mistura de todas aquelas cores de sofrimento, mergulhei as minhas emoções e dei o braço à amargura dos outros.
Notei existirem dores mais fortes que as minhas ou pior suportadas, atingindo por vezes o desejo expresso de partir.
Acabei também por escutar com todos os sentidos, aquelas vozes sem rosto, no grito dos seus pesares.
Partilha ? Não, não creio ! Foi por inteiro !
Pacifiquei a alma. Serenei.
No reino das solidões consegui situar a minha.
Lavei a raiva, aceitando a dos outros.
Aos outros aceito e compreendo, e até mantenho amizade com seres com vidas, sentires e condutas diferentes das minhas, na convicção de que não sou dono da verdade, nem sequer sei bem onde ela mora.
Intolerante, ainda sou, comigo próprio. Exijo-me.
Um destes dias irei perdoar-me! Prometo !

E assim a vida me mostrou que, e apesar de, sou um privilegiado.

4 comentários:

notyet disse...

De cadencia a 9 de Dezembro de 2006 às 19:55
Não demores a perdoar-te querido amigo. Vive, simplesmente. Aí sim continuarás a ser o previlegiado que já és.

De empatia a 5 de Março de 2007 às 16:26
O perdão não chega pois nunca conseguirás alcabçar o mais fundo do teu EU. És demasiado secreto até para ti mesmo...No teu jardim não deixas ninguém entrar e por vezes esquece~s-te de lá ir para cuidares das tuas flores. Tens de ler novamente "o Princepezinho". Eu fiz isso ontem!
Já tinha lido este teu artigo que acho óptimo mas na altura não tive tempo de o comentar... Mereces um beijo por ele!

biabisa disse...

Credo, Prof. Pareceu-me azedo ou entendi mal? Eu não lhe dou autorização para desesperos e raivas. Não conseguimos aceitar tudo o que nos vem por acréscimo, masnão nos devemos culpar para não termos que pedir desculpa. Bjs

Anónimo disse...

horas que se transformam em dias e em anos, a ouvir a tristeza alheia, a locura alheia, o desejo do fim alheio... e afinal tudo tão perto. todos tão iguais. o alheio q se sente agora perto, como o braço que agora reconhecemos também como nosso.
no fundo, todos um só.
no fundo...

Anónimo disse...

**** disse...
Ir ao passado reviver não é mau, o problema é quando nos prendemos lá demasiado tempo, só entorpece os tendões.
E com esta humidade que aí anda, ainda acabamos por enferrujar as dobradiças.

Dê só um pulinho, volte logo: porque lá no passado, mesmo quando era bom, existem umas teias "chatas"...
... para além de que há que dar espaço à memória para guardar as coisas do presente (que já vão sendo futuro :)

19 de Março de 2008 22:13:00 WET