sábado, 6 de outubro de 2007

(39) AS SANDÁLIAS



Continuaria enrolado no sonho, não fora aquela batida persistente. Abri um olho e accionei os outros sentidos.
Levei tempo a rever-me. Fazia fresco, era manhã. Enrolado continuava porém no cobertor, de que perdera o hábito naqueles últimos meses de verão.
O ruído continuava como cão a pedir guarida. Teve de ser. Separei-me da manta e, em pelota, assomei à janela. Tudo estava explicado. O inverno assomava às portas da cidade e, para reconhecimento, mandara avançar os vanguardistas. Ali estava o Outono e os inseparáveis ajudantes: o chuvisco e o vento ligeiro.
As folhas secas, apanhadas de surpresa, esvoaçavam aflitas, sem destino, sacudidas do torpor morno dos últimos dias de Estio.
Aqueles arautos avisavam os humanos da cessação quase imediata da mordomia da estação quente. Tempo de trocar de fardamentos, o que me levou de imediato à relação próxima dos meus pés e das sandálias. Que seria delas ? Já me compadecia a interrupção daqueles amores.
Não riam. Recorda-me bem aquele dia de inicio de verão quando estaquei junto à pequena montra da sapataria na intenção de encontrar algo mais leve do que as botas de inverno. E elas, as sandálias, lá estavam, num cantinho, pela humildade ressaltando entre outras, sem arrebiques, simples, pele de mel, macias, a prometer caricias de que os meus pés andavam ávidos e a lançar-lhes olhares gulosos a que eles não foram insensíveis.
Antevi problemas, tentei arredar-me na fuga ao compromisso. Todavia eles, por si, encaminharam-me à entrada da pequena loja. Daí a enlaçarem-se, foi um tiro. Não sei dizer de quem foi a iniciativa, fundiram-se de tal forma, dois em um, só possível num amor de primeira vista. Cativaram-se e aceito. Elas tinham tudo o que uns pés cansados do percurso podiam desejar, simultaneamente macias e firmes, delicadas mas justas, aceitando as diferenças, completando-se.
Nem sequer discuti na minha plena incapacidade de os separar. Paguei, deixei as velhas botas e eles vieram felizes na experiência daquele amplexo, estudando-se e entregando-se.
A partir daí. Que posso eu dizer ? Foi a loucura ! Não se desligaram mais, excepção a banhos e dormir que aí opus felina resistência.
Porém de noite os pés viviam agitados pela breve separação e elas, junto à cama, ansiavam pelo raiar do dia e por aquele que era o meu hábito de ir ver o sol a vestir-se. Novas andanças, novas descobertas, novos enleios.
Como vou eu agora convence-los que tudo acabou ?
Enfim, terá de ser, já venho.
Estou de volta. E venho perplexo... A situação foi aceite, compreenderam que nada é eterno, que foram privilegiados porque tiveram e isso nunca estará perdido e acrescentaram um pedido. Gostariam num dia ou outro de sol, sempre que possível, unirem-se relembrando aquele verão jamais esquecido. Doçura e amor. Lindo de doer.

E SE OS HOMENS CONSEGUISSEM SER ASSIM ?

1 comentário:

notyet disse...

Comentários antigos:
De Di a 6 de Outubro de 2006 lindo mesmo !

De Di a 9 de Outubro de 2006
Acredito que é possivel, mas o caminho que precisa ainda percorrer é penoso.

De yuki a 18 de Outubro de 2006
Gostavas de ser amado assim? Três meses por ano ou pouco mais?
Bem, na verdade confesso que mais vale três meses de amor verdadeiro que uma vida inteira de enganos.
(as sandálias são giras!)

De preconceitos a 19-10-2006
Apesar dos meus quinhentos anos, não sei ainda bem o que é o tempo. Tento aprender.
Desta forma, uns minutos, umas horas, uns...
Continuo a pensar que se pode viver uma vida em alguns momentos, desde que, desse período e como sedimento, reste um traço de ternura, essa sim, eterna, sem volume e cabe imensa num pequeno coração, sobretudo num coração de criança.
Os meus pés são como eu, e, se o "tempo" o permitir,
lá voltarão a unir~se às sandálias, ternurentos, ternurentos...
(Como tu, sim, acho-as giras).