domingo, 30 de novembro de 2008

(201) Vida de cão




Foto da sua meninice.
Não deve lembrar-se.
Memória é defeito humano.
Todavia outros copiou.
Quando lhe digo:
Cãozinho lindo.
Saracoteia os seus actuais 40 kgs
E vaidosamente abana o rabo...

(200) O poder familiar




Tirania, ditadura e democracia, três regimes, entre outros, porventura distintos, tendo todavia em comum a tomada do exercício do poder.
O tirano toma todo o poder nas suas mãos e diz: farão o que quero e como quero. Tranquila maioria absoluta.
O ditador, mais brando, à socapa, cala as vozes contraditórias e, a final, declara a concordância dos que restam. Maioria absoluta trabalhada.
O democrata, mais doce ainda, arenga, arenga, proclama todos iguais, todos livres de fazerem aquilo que ele entende ser o melhor.
Amansado o rebanho basta-lhe a maioria relativa e nem precisa de cães.
E assim, para escolha de quem manda lá em casa, pede-se ao diabo que decida.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

(199) Carraças



Os gémeos desanimo e desalento, contrariando o conceito, na rapidez de movimentos aos nomes não fazem jus.
Ao acordar, deparei hoje com esses dois inseparáveis patifes à minha cabeceira.
De nada me valeria o protesto ou tentar mergulhar de novo no agradável mas abandonado sonho em que pairava.
Por regra não discuto, acato, arrasto-me ao cumprimento das tarefas matutinas, engulo o almoço, pequeno em demasia, e desando.
Sendo muito chegados, unha com carne, unânimes e tenazes nas suas perseguições, são carraças e lá seguem agarrados ao meu pelo.
Dissimuladamente aproximo-me da cafetaria e sinto neles o primeiro abalo ao odor pairante da cafeína.
Conhecendo o resultado, sorvo a mistela, lentamente e com delicia.
Minutos passados perdem a ousadia, esmorecem, e, como nunca sei quando recobram o alento, sem piedade, sorrateiro, pago e ali os deixo.
Por azar sabem onde uso dormir.
Todavia, e com sorte, só amanhã voltarão, pelo que vou aproveitar da oferenda deste belo dia de sol.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

(198) Currículo

Dificuldade: separar o trigo do joio











Perdido o hábito da leitura resta a adoração antiga pelas fitas de mistério onde aguçava o engenho e raciocínio na expectativa de descobrir o mau, normalmente entre os bons, escapando aos engodos do realizador.
Hoje essas fitas escorrem sangue e abusam dos efeitos especiais, antes na penumbra por falta de engenho e técnica.
Assim, quando o noticiário é a repetição do de ante ontem e ainda não quero dormir, lá me foge o comando para uma dessas séries, afastada a hipótese de adormecer pelo usual entremeio de basto tiroteio.
Para além disso, agradam-me as palestras.
Ah essas sim... e de preferência de temas polémicos ou intelectualizados.
Aí, quando não consigo espremer o sumo do palestrante, deleito-me na observação do publico e das suas deliciosas reacções.
Todavia há um sobreaviso a reter.
Quando o curriculo do orador é extenso, a coisa tende a não correr de feição, funcionando no mínimo duas variantes: o sujeito obriga-se a dissertar longamente para justificar aquele ou perde-se em intelectualidades e citações aleatórias, nada tendo a ver com a paciente assembleia.
Em ambos os casos cuidem-se: quando diz "e agora para terminar", não suspirem de contentamento, levarão pelo menos com mais quinze minutos de enredo, pois o bilhar é grande.
Não sou critico desta arte, mero observador atento, e daí creio que o paciente publico, no final, por alivio ou satisfação, troa em imensas palmadas.
Não fico doente todavia, pois sei que se inquirir duas ou três pessoas perguntando o que disse o homem, a resposta universal e unânime é o gaguejo em nada justificativo das palmas.
Em resumo e para terminar (já estou a tomar o hábito mas garanto não demoro):
Tantos cursos e carreiras, sejam eles de água fria ou a ferver, devem tomar da curta vida o seu tempo e, tais sujeitos, quando se sentem apertadinhos, de certo nem uns minutos terão para o chichi.
Lembra-me um puto, para não ficar diminuído lá no grupinho social, à sua vez disse que o pai também tinha um curso, o de tirador de cerveja, e estava a tirar o mestrado da bisca. A sapiência da inocência.
Na verdade, e apesar do desabafo, tenho apanhado belíssimos oradores que sabem o que dizem e para quem falam, interagem com o público e eles próprios se estão marimbando para o currículo, simples palavras em papel ou oradas, mor das vezes não certificando garantia.
São eles que me permitem distinguir os outros.
Bem hajam.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

(197) Loucuras

Numa época em que freneticamente todos correm para a loucura. há quem se queixe do custo da primeira consulta de psiquiatria.
Desse primeiro embate entre paciente e especialista terá de brotar a pureza do diagnostico e consequente processo terapêutico, a cozinhar entre história e técnica, daí o cuidado e tempo a despender nessa primeira.
Psiquiatra meu amigo, segundo seu relato, sofreu isso na pele.
Após os praxentos cumprimentos, o paciente tímido, acanhado, olhar evadido, deslizou molemente na cadeira que lhe foi oferecida, apático, incompreendido.
Após alguns minutos, para quebrar o impasse, surge o incitamento:
--- Então do que se queixa, conte lá tudo desde o principio...
O homem saiu do letargo e, de olhos brilhantes, reconhecido, disse:
---Bem, no principio criei o céu e a terra... blabla blabla
De madrugada, o meu amigo saiu, sorrateiro, sem ruído. O paciente, mesmo sem ser ouvido, continuou a relatar suas façanhas, ainda, salvo erro, no século V.
O especialista abandonou a psiquiatria e hoje passa o tempo a olhar o rio, deliciado com o pio das gaivotas...
Agora digam-me: os 90 euros previstos eram demasiado?
Uma autentica profissão de risco..

terça-feira, 18 de novembro de 2008

(196) Beijoqueiros

Deponho em favor dos beijoqueiros.

Pecará o gesto pela deselegância de execução.
Todavia, no seu vasto leque de atitudes e intenções, até poderei jurar ser acto dos mais praticados pelos humanos, superando muitos outros.

Cobre, absorve, a nata dos sentimentos, dos cândidos e ternurentos aos mais fervorosamente apaixonados, e, nesta beijoqueira democracia, até o beijo da perfídia tem assento.

Seus companheiros inseparáveis, o toque e o olhar.

No toque terno da mão, no abracinho, no abraço, no amplexo da fusão do corpo, a mando da alma, muda o olhar de expressão.
Podem ser de afloramento, cortesia, verdadeiro contacto, ou esmagamento, havendo a distinguir os pontos beneficiários desta caricia e, no acto, pra valer, deverão os lábios
tocar a pele nua.
Dizia que os humanos professam a cultura do beijo e o distribuem a esmo.

Em publico,
é óbvio e manda o pudor, são distribuídos pela cabeça, seus subúrbios e ainda mãos e braços.
Na intimidade não falo, os mais recônditos pedaços de pele usufruirão do beneficio e o critério de execução fica a cargo de quem com gosto o fizer.
Em coisas desta relevância sempre me interessou a opinião dos outros e foi assim que há dias perguntei a alguém, na segunda metade da vida, madura e culta, se via diferença entre o beijo nos lábios e na boca.

Da peremptória resposta estarrecido quedei:

---Na boca ? Que nojice ! Respeito muito o corpo.
Deu-me que pensar.

Saberá ela a diferença ou é o pudor a falar ?

Nojice ?! Conceitos são o que são, efeitos a considerar.

Tanta gente por aí se delicia comendo caracóis, bivalves, camarão e sorvendo por inteiro seu sistema vital, incluído o digestivo.

Reflectindo. Se os beijos que dei na vida cumpriram sua missão e o corpo vou mantendo, não vejo assim tanto mal, mas posso não ter razão.
Pronto, com razão ou sem ela, não me quero castigar.
Vou continuar a beijar.

(195) Abismos

Dizia um:
--- Hoje temos o azul negro do céu recamado de cintilantes diamantes
Dizia o outro:
--- Pois, amanhã não deve chover.
E por entre eles seguia seu destino, indiferente e sereno, extenso oceano, separando o prosaico do poético.

sábado, 15 de novembro de 2008

(194) As corridas

Possuis apenas aquilo que não perderes com a morte, tudo o mais é ilusão


Numa mini maratona disputada por milhões de concorrentes, ganhei em tempos a vida.
Imposta era a corrida. Esperado vencedor único e eliminados os restantes.
Não me cabia opção, nem vontade, nem conhecimento do eventual mérito do prémio. Impulso era o critério, nós as marionetas.
Vencedor, aqui cheguei sem pedir, beneficiei do usufruto da dádiva. Foi-me concedida a vida, o acesso ao conhecimento pelo livre arbítrio e longa aprendizagem, comum a outros vencedores, doutras corridas, doutros tempos, de semelhante modo impelidos.
De imediato fui inscrito noutra competição, todavia mais dura, porventura consciente e aparelhado com algumas sofisticadas armas.
Desta feita o êxito final, a morte, é assegurado a todos, abstraído qualquer mérito do percurso.
O processo inverte-se, não há empurrões de passo à frente, subsistindo todavia alguma falaciosa delicadeza cultivada segundo as escarpas do próprio percurso.
Seria lógico, nesta derradeira corrida, o vencedor ser o ultimo e talvez assim seja, dando a impressão que bastaria parar para vencer.
Mas não! Esta tem regras. Não é permitido parar.