domingo, 12 de outubro de 2008

(190) O gavião

Na tentativa do voo batia vigorosamente os braços e, de súbito, estava a planar na copa.
A surpresa do efeito baralhou-me.
Em desespero, enlacei um forte tronco que o velho senhor me estendia e respirei fundo.
Conseguira!
A esperança de repetir, aconselhava repouso, mas às minhas mãos faltavam pequenas, porventura grandes ferramentas: garras aduncas, um bico e rapidez de reflexo para calar o persistente zumbido dum teimoso e maçador moscardo.
O murmúrio da brisa soava a sorriso de malícia, face à minha inoperancia em resolver problemas comezinhos.
A ansiedade do fracasso iniciava os seus avanços quando o gavião, ligeiro e suave, poisou a meu lado e o grande e triste olho amarelo me fitou longamente.
Volvidas eternidades, disse ele:
--Tens os teus devaneios ?
Na certificação daquela insólita realidade e para não perder o equilíbrio nem sequer cocei os olhos ou me belisquei, e retorqui titubeando:
--Mas... falas ?
Mergulhando o olho profundamente em mim, retorquiu:
--Por má sorte. Era como tu, incauto e ambicioso, consegui o dom da fala e da memória, tendo de aceitar essa tralha de equipamento que os homens chamam de razão, consciência, inteligência, conjunto terrível na produção de emoções cujo malefício eu desconhecia.
Perdi a paz e serenidade e a regressão não é possível.
Deixei de viver a plenitude, o aqui e agora.
Ficou presente o sentimento de culpa e a sensação egoísta de sacrificar outras vidas para conseguir sobreviver.
Um inferno. No fim do dia pergunto-me se mereço viver.
Olha, se conseguires o dom de voar, rejeita todos os outros e assim usufruirás da singeleza da vida animal, sem ontens, sem amanhãs, sem remorsos. Sem esperança e sem passado.
E dito isto, lançou-se ao espaço e voou ligeiro.
Em simultâneo soou uma estridente campainha e, desequilibrando-me assustado, caí... da cama claro para de novo enfrentar a outra realidade.
Tocava o telefone e, sendo tardia a hora, deveria ser o diabo, personagem central na representação da existência de Deus e seu lacaio na execução do desagradável.
Fui atender... e era.
Até hoje... o amarelo sempre me lembra aquele olho sem lágrima, triste e tão choroso.

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