domingo, 24 de dezembro de 2006

(67) ORAÇÕES

Caça. Uma das paixões do Januário
Era também muito crente, coisa que não casava.
Esses seus olhares para o alto, implicariam obviamente bondade e piedade, virtudes não compatíveis na matança por prazer.
Mas enfim, a cada qual sua moral e lá ia usufruindo do seu gozo.
O sonho, a meta, era a caça grossa.
E, do tanto sonhar ao realizar, foi uma penada.
Gastou o que tinha e não tinha e lá embarcou.
Dizimou. Sem dó nem piedade e por mera e vã glória.
E dizimou o que na gana lhe deu, até ao encontro com o leão.
Ali, em frente ao poder do rei, os nervos não aguentaram, largou armas e bagagem e, como o povo diz, cavou.
Correu, correu e o rei no seu encalço.
Âs tantas esparramou-se. Fechou os olhos perdido e, esquecida a sua frieza na matança, levantou os braços ao céu, soluçando e rogando:
Senhor, fazei que o animal seja crente.
A selva aquietou-se. Ainda a medo, abriu os olhos e o milagre estava à vista. A grande fera de rojo, patas dianteiras justapostas, erguia a grande cabeça enjubada e balbuciava.
Dissipado o pânico, sorriu o Januário. Afinal fora atendido !
Não era caso para jubilo e disso ficaria certo se os animais entendesse.
O leão orava sim, agradecia ao senhor aquela magnifica refeição.
Crente, mas também não piedoso.

Não surge fácil a tarefa de Deus, em face do contraditório dos rogos, tornando-se evidente que o sol quando nasce não é para todos.

sábado, 23 de dezembro de 2006

(66) VIRAR O BICO AO PREGO


Não consigo entender a passividade das formigas quando um pé humano, com intenção ou sem ela, pisa um dos seus carreiros.
São uns centos daqueles pequenos seres que ali são destruídos e, aparentemente, o facto não perturba a continuação da tarefa do ir e vir, ressalvada uma ligeira agitação.
Curioso do que pensam disso os outros humanos, resolvi sair à rua armado de micro e câmara, interpelando o passante, coisa muito em moda nos tempos que correm.
Cheguei à conclusão que a maioria age como as formigas. Regra geral não sabem, não tem opinião, não tem tempo e quejandos. O que importa é o constante ir e vir.
Emoções ? Nem por isso.
Foi giro e absorvente, porventura sem resultados práticos.
Caricaturo aqui duas ou três dessas entrevistas pelo seu destaque_
1. Encarou-me. Eh pá, não sei, talvez fosse útil nomear uma comissão para estudo do assunto e ... interpõe um sorriso alarve e exclama... Eh pá isto é para os apanhados!
2. Aprumou-se, ajeita o visual, e certamente na esperança de sair no noticiário das oito, desata num discurso complexo, falando, falando, e não dizendo nada. ( Onde é que eu já tinha visto isto ?)
3. Outro decerto me conhecia. Fitou-me, virou costas e rosnou “o gajo é doido”.
Fácil se torna retirar a conclusão que ninguém quer saber de ninguém e o sistema é tocar para a frente mesmo que a meta seja atrás.

Deu-me gozo e por tal vou preparar outra entrevista.
O assunto tem de ser explosivo.
Por exemplo perguntar o que pensam dum ser gigantesco que anda a passear na baixa pombalina, espezinhando com a sua patorra 430, humanos, viaturas, edifícios e dando piparotes aquelas belas estátuas, quando alça a perna para passar para lá do arco da Rua Augusta.
Aqui vai interessar sobretudo a cuscas, mirones e radicais que de certo vão arriscar para dar uma olhada e depois poder contar, aumentando... Se escaparem.
Olha, aquele tipo vestido de branco a dizer-me para não brincar com a câmara que é muita cara. Outro sem sensibilidade.
Que Deus me perdoe.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

(65) ESCUTANDO



É proposto reflectir sobre a influencia que possa ter tido em mim o atendimento de prevenção do suicídio, anónimo, solitário e pontual em que durante anos escutei a angustia, o desespero e a solidão dos outros.
Quando iniciei essa escuta, há muito andava eu prenhe de raiva e intolerância. Duas figuras um tanto mesquinhas porém garantes da continuação da vida, mesmo quando tudo indica o contrário. Magnificas substitutas do desânimo e da apatia, estas por certo levando a outros caminhos.
Creio que nunca fui menino e daí sempre considerei a vida tarefa árdua. O fardo é difícil de transportar na subida e, por vezes, também na descida, ao contrário do que dizem dos santos.
O intolerante, por demasiado assertivo e pleno de disciplina, não é de todo bem visto. Assemelha-se ao ditador.
Porém nele coabitam a convicção e a justiça.
Quando critica os outros, exige o dobro de si.
Já a raiva é menos nobre, tem outra cor.
É aversão, falta de crença, não aceitação, contrariedade. O “porquê eu ?”.
Pela via errada, é luta contra a soberana ditadura da natureza.
Lá me integrei no tal de atendimento. Anos pesados que foram !
Na mistura de todas aquelas cores de sofrimento, mergulhei as minhas emoções e dei o braço à amargura dos outros.
Notei existirem dores mais fortes que as minhas ou pior suportadas, atingindo por vezes o desejo expresso de partir.
Acabei também por escutar com todos os sentidos, aquelas vozes sem rosto, no grito dos seus pesares.
Partilha ? Não, não creio ! Foi por inteiro !
Pacifiquei a alma. Serenei.
No reino das solidões consegui situar a minha.
Lavei a raiva, aceitando a dos outros.
Aos outros aceito e compreendo, e até mantenho amizade com seres com vidas, sentires e condutas diferentes das minhas, na convicção de que não sou dono da verdade, nem sequer sei bem onde ela mora.
Intolerante, ainda sou, comigo próprio. Exijo-me.
Um destes dias irei perdoar-me! Prometo !

E assim a vida me mostrou que, e apesar de, sou um privilegiado.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

(64) IMPASSE







SER SEU AMANTE, TENTEI, NÃO CONSEGUI.

SER SEU AMIGO, NÃO DEIXOU.

MORRI !

sábado, 2 de dezembro de 2006

(63) A DÚVIDA



Tenho feito progressos na aceitação da loucura e sua dimensão.
Falo da minha claro. Embora reconheça que todos somos um tanto, dependendo sempre da opinião do outro e do próprio conceito.
Os passos foram temer, compreender, aceitar.
Tenho por isso de repetir algo que escrevi e cujo sentimento perdura:

Se me fosse permitido separar a humanidade em duas partes, os loucos e os outros, e, por modéstia, me colocasse no sector dos outros, restar-me-ia a angústia de não saber o que eles sabem que eu não sei.