quarta-feira, 19 de setembro de 2007

(89) ESTADOS D'ALMA



Aquando lidei com os sábios foi-me dado o prazer do convívio duma artista plástica, Lídia de seu nome.
Era uma combatente, resistente, força da natureza.
Com forte traço e cores, escrevia na tela histórias d'encanto..
Acompanhei a obra, vivi a ascensão e o clima de mudança, (evolução ou involução ?) tão próprio da alma de artista na avidez de atingir o cume, o inatingível.
Usando da mesma robustez do traço e da luz das suas cores, saltou do detalhe do retrato e da paisagem aos estados de alma cuja expressão na tela propiciam profundo mergulho no espírito de cada observador sensível.
E assim continuou o ciclone de elogios à sua obra.
Ausentei-me algum tempo, e não preciso quanto, por não saber medir.
Foi estranho o reencontro.
No seu cantinho recebeu-me triste e abatida, sentada à frente duma tela que não resisti a mostrar acima.
--E disse:
Quero a tua opinião.
E os seus lindos olhos, de normal serenos, prenunciavam tempestades.
Não faltei à verdade, a minha claro, e respondi:
-- Meu amor, mesmo que esta tela te proporcione orgasmos múltiplos, a mim, podes crer, não causa sequer a previsão duma ligeira erecção.
E à cautela acrescentei:
--Nota que esta opinião pode resultar da minha idade e não da qualidade da obra.
Um raio de luz dispersou aquele céu tempestuoso dos seus olhos e sorriu.
-- Foi a minha ultima obra, pura experiência. Assinei. Não calculas o êxito. Para mim basta, Estou cansada.
E continuou
-- Vou dar lugar à derradeira. Será de técnica mista, um esfregaço de excremento que espatulo sobre a tela, deixo secar e aplico um spray prateado. Proponho irmos incógnitos à abertura e escutarmos as interpretações eruditas de alguns.
E deu o grito
-- Só tu e eu saberemos que não passa de trampa.
A amargura de não se rever nas projecções dos outros.
Serenei-a com terno e longo abraço de silencio.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

(88) A ESCALADA

Para conhecer do sentido da vida, havia-me proposto chegar ao topo.
Estou cá em cima. As expectativas foram iludidas.
Sobre a cabeça a ilusão do azul celeste e farrapos brancos esvoaçando esbaforidos ao gélido bafo do vento.
Nem folha nem fumo.
Nem árvore, nem ave, nem o seu pio.
Afinal aquele sentido havia de ter sido retirado do desafio da escalada e durante a sua superação.
Entre a pregagem das estacas devia ter dado um compasso de espera, olhando em volta, imaginado até as árvores, as aves e os seus gorjeios e talvez até flores.
Na ânsia da descoberta esqueci o sonho, abafei-o, e resta apenas o desespero de não ter caído eu, quando perdi quem me seguia.
Ali, no topo, nada mais resta.
Vou espetar a bandeira da angustia, infeliz marco da minha presença neste lugar insólito e iniciar a facilitada descida, onde encontrarei o sentido do nada.