segunda-feira, 14 de agosto de 2006

(31) DE CABEÇA PERDIDA

O Eduardo nunca fora de grandes ou continuados amores. Cerebral, supervisionava.
Dizia ele, pisava levezinho não fosse atolar-se em areias movediças.
Dizia-lhe eu, para não brincar com o amor, sobretudo o dos outros.
Mas ele petiscava amor, alheio ao perigo da intoxicação.
Era no fundo um poeta ! Amava o amor !
Idealista, na busca do improvável, diria do impossível.
Disfarçava as suas ilusões em banhos de lógica e cinismo. Sofria...
Amante era do belo e passava largas horas em contemplação.
Sorte ou azar o seu, certo dia, refastelado numa esplanada, admirava o sol, nu e alaranjado, no horizonte a mergulhar em lençol azul cristal.
Alguns flocos de nuvem, tal espuma, emprestavam vida ao mergulho.
Minutos ou eternidades depois, entre essa maravilha e os seus olhos, estacou uma linda mulher, sorrindo.
Conheço o Eduardo. Sorriso retribuído, convite à mesa, uma bebida, curiosidade tremenda em saber, condição essencial, se além da beleza aparente, ela seria também uma mulher linda.
E, de blá-blá em blá-blá, o Eduardo estarrecia pelo imprevisto. Pensamentos, ideais, afinidades preenchidas. E sobretudo perfeita beleza interior.
A Diana, de seu nome, mulher com capacidades e qualidades a permitir-lhe, finalmente, pisar qualquer tipo de areia, afoito e sem receios.
Bebidas esgotadas, disse-lhe um “não fuja” e foi ao bar já ansiando ao retorno.
Passados alguns minutos de impaciência voltou à mesa e à desilusão.
O sol não deixara rasto, a água era agora azul negro.
A Diana desaparecera !
Perdeu a cabeça...
E desde então, de cabeça perdida e sem ver, ali vai com frequência, no mínimo para tentar separar a realidade do sonho.

sexta-feira, 4 de agosto de 2006

(30) CONTRADIÇÕES

No campeonato da vida na terra e neste ano de graça, impensável será a supressão da maioria dos sons, verdadeiro exército na agressão ao complacente e doce silencio.
À sombra de conforto, rodeou-se o humano de apitos, silvos, campainhas e buzinas, agudos e graves correndo a escala, condicionando reacções e condutas.
Estou nesta, e, sendo feros os carcereiros, sem esperança de escapar antes da pena cumprida.
Parto de vantagem. Tenho boa memória e, por tal, apesar de serem muitos já não salivo quando os ouço e corro de imediato para evitar a bisagem.
Trim e trim (telefone fixo) e já estou com ele na mão. Digo estou (sempre que posso evito o alô).
Uma voz de mulher, em tom baixo e sofrido, pergunta por não sei quem. Constato e declaro o engano. Algo nos deixa suspensos... conversamos. Sou modestamente sociável e urbano, estatuto que quero manter.
Abrimos em banalidades, creio eu. As banalidades são por norma os pilares da vida e, vez em vez, entrançam enleios.
Parece ter sido o caso. Poucas banalidades após, e por algum passe de magia, aquela mulher de trinta anos desbobinava a um desconhecido o filme da sua vida de que retirara as cores.
Carente, sem amigos, afectos incompreendidos por selectividade e exigências no retorno, não licenciosa mas licenciada, descrente do sol e da lua, numa perfeita solidão interior transparente, embrulhada em rendas de anseios e desilusões.
E não vivia só, rematou, tinha um peixe, um desses seres do belo mundo do silêncio.
Questionei... confrontei.
Fi-la medir e sentir a sua relutância à verdadeira entrega, o quanto preferia a amargura à ternura e, no entanto, quando o compromisso não existe, abre a sua intimidade a um estranho num espaço roubado a um engano, estranho que a aceita e compreende.
Depois pequei. Acredito que as palavras nos embalam. Dão quase tudo. Necessitam quanto a mim. do tempero dos momentos mágicos: o toque humano, real, na pele!
E sabendo ser boa a relação com os pais, coloquei a ingénua questão:
-Porque não se expõe a seus pais, como o fez aqui e agora a um desconhecido ?
A resposta foi curta e elucidativa
-Ah, os meus pais já andam pelos sessenta anos não entendem destas coisas.
Aqui balancei.
Se lhe digo a minha idade desnudo a sua ilusão e aclaro o preconceito. Se não....

Foi um blão, blão que decidiu. Também não salivei. Era a porta a chamar por mim.
Aproveito o ensejo e despeço-me. No meu intimo fica o desejo que aquele preconceito não lhe ceife os poucos grãos que lhe restam da sua seara de amor.